Saudade
Someone was smoking. And the kid with short hair and a gold hoop in his ear was listening to his Walkman. The salesgirl wore blue eye shadow and pink lipstick that was doll-like, it’s true, but she was beautiful. It was cold. The floor was clean, impeccable. A man with a Cearense accent was talking on his cell phone. Another cell phone played Mozart, A Little Night Music. The ceiling was gray and gentle and nearby vultures landed atop lampposts to dry their spread wings. A nearby sign warned that the speed limit was 60 km/hr. Electronic supervision.
Someone was smiling and a salesman was speaking English. Someone held a wine-colored passport with gold inscriptions. A boy carried a surfboard, coming from where. Cold clean floor, gray ceiling, gentle accent. Monday had spilled over from Sunday like leftovers, as if an autonomous day didn’t have the right to exist. In the airport lines, Mozart, Walkman, dolls, vultures, cigarette. One number, destination Fortaleza. Another number, destiny.
Cold hands, the soft touch of fingertips along the down of the nape, the forearm hairs. Certainty, uncertainty, the recollection of a vague jealousy and a fierce promise, the lemon from the lemon drops in the rough saliva. The smile from their embrace and the arc of salvation in their gaze, one’s forehead resting on the other’s raised shoulders.
Escalators. No aroma of coffee. Words with un sabor de pan. Quiet voices from the stream. You're sweet, he says, you don’t seem like you were born in a sea town. She says, that’s because I was conceived on a farm. They squeeze each other’s hands and turn slightly apart. I.D., boarding pass. Departure gate such and such—excuse me, where do I pay for parking, thanks.
Cold ceiling, gray floor. Mozart surfing cigarette. Pink lipstick. Have a good trip, sir. There’s a big glass wall separating the world into two hemispheres. There’s a moment when it’s necessary for them to release their hands, for her to erase the image of his broad shoulders from her mind. To turn back. The silence amid the voices wears blue eye shadow.
Saudade means looking for the car keys in your purse and opening the door and there in the sky: vulture planes with spread wings. 60 km/hr. Electronic supervision. Soft radio, a headache, and choices ahead—Centro, Copacabana, Tijuca. A cigarette, who knows.
Reunion
I return to Brasília apprehensive, thirty years later. Maybe Brasília is just a childhood fable in which meaningless words echo like super block, Monumental Axis, and Gilberto Salomão. (I was learning to talk and my mother used to show me off to visitors, asking: what are we going to do at the Gilberto Salomão Mall? To which I’d reply: play. Until the day I was desperate to go to the bathroom and gave an unexpected response).
Maybe I’d dreamed up the capybaras. But what of that photo? Me in a hat, my dad hugging me, and the soggy brown animal fraternizing with us from the other side of the bars. Someone had photographed my dream—the inevitable conclusion. Brasília is an imaginary place where I watched Godspell on TV with my sister, in the dark. In Brasília I fought with my brother and then spent the whole day scared of him. Brasília is an imaginary place where dreams are photographable.
I don’t feel dizzy looking out the window of my hotel room on the tenth floor. I see the TV tower that’s both immense and minuscule like everything in Brasília. Is my hotel in Brasília, Tokyo, or Berlin? The men in suits and the women in high heels don’t wish me good morning in the elevator. Everyone is conducting business on their cell phones and meeting important people for breakfast. Because life is urgent. My countrymen drag their slippers and raise their voices at the end to exaggerate their accents, making the s’s hiss. Because life is carioca. The men in suits hold the elevator doors for me. The cariocas don’t.
Brasília jokes: from its top hat it immediately conjures a Reino Encantado school so that I can touch my childhood, but I proceed with caution. I don’t know if it’s the same. From that other childhood I hold onto my fear of the fat blond boy and the t-shirt the teacher painted for me. Brasília doesn’t answer me. Everything is whispers. There aren’t sidewalks for pedestrians and there aren’t routes for the eye, which flies like a drunken bird. They say: monumentality. It doesn’t shock me. Brasília is an epiphany and a soft yawn made of small and immediate things, of nooks and surprises. Paradox? Norm. There’s nothing more ridiculous than the expectation of coherence, especially in Brasília.
But I keep feeling a certain fear that at any given moment people will become weightless and fly off into Brasília’s numerous skies, finally and irretrievably invaded by space. If I brought questions, Brasília, generous, gave me more questions. Brasília didn’t return me to myself, it just showed me others (other me’s, other Brasílias) that fit the same fantasy. In my wrist, the pulse beats red blood cells of concrete, porous, vaporous, a sigh across the Central Plateau.
Saudade
Alguém fumava. E um jovem com cabelo muito curto e uma argola de ouro na orelha escutava seu walkman. A funcionária usava sombra azul nos olhos e batom cor-de-rosa e tinha jeito de boneca, é claro, mas era bonita. Fazia frio. O chão estava limpo, impecável. Um homem com sotaque cearense falava ao telefone celular. Outro telefone celular tocava Mozart, a Pequena serenata noturna. O céu estava cinzento e manso e não muito longe dali os urubus pousavam no alto dos postes de luz para secar as asas abertas. Não muito longe dali uma placa avisava velocidade máxima 60 km/h. Fiscalização eletrônica.
Alguém sorria e um funcionário falava inglês. Alguém tinha nas mãos um passaporte cor de vinho com inscrições douradas. Um rapaz levava uma prancha de surfe, vindo de onde. Frio chão limpo, céu cinzento, sotaque manso. A segunda-feira vazara do domingo como se fosse sobra, como se não tivesse o direito de existir dia autônomo. Nas filas, Mozart, walkman, bonecas, urubus, cigarro. Um número, destino Fortaleza. Outro número, destino.
Mãos frias, o toque suave das pontas dos dedos sobre a penugem da nuca, sobre os pêlos do antebraço. Certeza, incerteza, a recordação de um ciúme vago e de uma promessa feroz, o limão da bala de limão na aspereza da saliva. O sorriso do abraço e o arco da salvação no olhar, a testa contra os ombros altos.
Escadas rolantes. A falta do cheiro do café. Palavras com un sabor de pan. Vozes pequenas de riacho. Ele diz você é doce, nem parece que nasceu em cidade de mar. Ela diz é que eu fui concebida numa fazenda. As mãos se apertam e os corpos se apartam um pouco. Carteira de identidade, passagem. Portão de embarque número tal – por favor, onde é que eu pago o estacionamento, obrigada.
Céu frio, chão cinzento. Mozart surfe cigarro. Batom cor-de-rosa. Boa viagem, senhor. Há uma vasta parede de vidro a separar o mundo em dois hemisférios. Há um momento em que é preciso destacar as mãos uma da outra e apagar os ombros altos. Virar de costas. O silêncio no meio das vozes usa sombra azul nos olhos.
Saudade se chama buscar as chaves do carro dentro da bolsa e abrir a porta e lá no céu aviões urubus de asas abertas. 60 km/h. Fiscalização eletrônica. Rádio baixinho, dor de cabeça e escolhas pela frente—Centro, Copacabana, Tijuca. Um cigarro, quem sabe.
Reencontro
Volto apreensiva para Brasília, trinta anos depois. Talvez Brasília seja só uma fabulação da infância em que eu ouça ecoar palavras sem sentido como superquadra, Eixo Monumental e Gilberto Salomão. (Eu estava aprendendo a falar e minha mãe me exibia para as visitas perguntando: o que a gente vai fazer no Gilberto Salomão? Ao que eu respondia: jogar. Até o dia em que estava apertada para ir ao banheiro e dei uma resposta inesperada.)
Talvez eu tenha sonhado com as capivaras. Mas e aquela foto? Eu de chapéu, meu pai me abraçando e o bichinho marrom e molhado do outro lado da grade, confraternizando com a gente. Alguém fotografou meu sonho – conclusão inevitável. Brasília é um lugar imaginário em que assisti a Godspell na televisão com minha irmã, às escondidas. Em Brasília briguei com meu irmão e depois passei o dia inteiro com medo dele. Brasília é um lugar imaginário onde os sonhos são fotografáveis.
Não sinto vertigens ao olhar pela janela do meu quarto de hotel, no décimo nono andar. Vejo a torre de televisão que é imensa e pequenina como tudo em Brasília. Meu hotel fica em Brasília, em Tóquio ou em Berlim? Os homens engravatados e as mulheres de saltos altos não me dão bom-dia no elevador. Todos tratam de negócios pelo celular e se reúnem com pessoas importantes já no café-da-manhã. Porque a vida é urgente. Con- terrâneos meus aparecem arrastando chinelos e falando alto a fim de mostrar seus esses chiados. Porque a vida é carioca. Os homens engravatados seguram a porta do elevador aberta para mim. Os cariocas não.
Brasília brinca: tira instantaneamente da cartola uma escola Reino Encantado para que eu toque minha infância, mas vou com cautela. Não sei se é a mesma. Daquela outra eu guardo o medo do menino louro e gordinho e a camiseta que a professora pintou para mim. Brasília não me dá respostas. Tudo são sussurros. Não há calçadas para o pedestre e não há rotas para o olhar, que voa feito um pássaro embriagado. Dizem: monumenta- lidade. Não me abalo. Brasília é uma epifania e é também um suave bocejo feito de coisas pequenas e instantâneas, de cantinhos e surpresas. Paradoxo? Norma. Não existe nada tão falso quanto a suposição da coerência, sobretudo em Brasília.
Mas continuo sentindo certo medo de que num dado momento as pessoas percam o peso e saiam flutuando por entre os inúmeros céus de Brasília, finalmente e irremediavelmente invadidas pelo espaço. Se eu trouxe perguntas, Brasília, generosa, me deu mais perguntas. Brasília não me devolveu a mim, apenas indicou-me outras (outras eus, outras Brasílias), que cabem na mesma fantasia. No pulso, o sangue também lateja hemácias de concreto, poroso, vaporoso, um suspiro sobre o Planato Central.